Em 1911, uma pequena ilha, no meio do Rio Itajaí-Açu, em Santa Catarina, foi varrida do mapa por uma grande enchente. E foi justamente essa ilhota que, no passado, batizou um dos municípios mais castigados pelas últimas chuvas, quase um século depois.Nossa equipe de reportagem visitou uma das áreas mais atingidas pelos deslizamentos: Ilhota, na estrada que liga Itajaí a Blumenau.
No caminho, um carro da polícia controla quem entra na região. Três mil e setecentas pessoas foram afetadas no município. Duas mil e cem na zona rural. O município é um dos maiores produtores de arroz do Estado. Ou melhor, era: mais de dois terços da safra já se perderam.
O agricultor Márcio Werner nos leva ao arrozal. No caminho já vamos atolando.“Essa lama prejudica bastante. Se o tempo não melhorar nem uma máquina vai passar. Aí vai ser perda total se as colheitadeira não puderem passar na lavoura. O desenvolvimento da planta também é prejudicado”, disse o agricultor.
Nesta lavoura ele, calcula uma perda de 50%. Do outro lado, a perda foi total. Seu Márcio caminha pelo cultivo arrasado para mostrar até onde vai a lama.
“O terreno vai se recuperar para um outro plantio”, observou o agricultor.
Seguimos em direção à área mais atingida de Ilhota. A barreira da polícia fecha a rua. Ninguém passa sem autorização. Nossa entrada é permitida, mas vamos em frente com uma ordem: voltar imediatamente aos primeiros pingos de chuva.
Quando se entra na área isolada a primeira vez, o impacto da destruição é tão grande que a gente custa a acreditar que seja real. Parece até um cenário montado para um filme de catástrofe. É muito difícil transmitir pela câmera a dimensão do que ocorreu.
Os moradores estavam preparados para o Natal. Jamais para uma tragédia como essa.
Quem saiu da região não gosta quando chamam a comunidade de vila fantasma, mas a ausência de vida deixa o ambiente pesado.
Os jardins viraram depósito para as árvores carregadas pela correnteza. A marca na parede mostra até onde chegou a água. A lama invadiu as casas e expulsou os moradores.
Quem vivia nesse local vai guardar para sempre, na memória, o horror do dia 23 de novembro. Juliano Cunha morava nesta casa, que fica bem no alto. Ela não foi atingida e foi desse local que ele pôde observar o desespero dos vizinhos.
“A gente olhou o morro e ele começou a cair. Começamos a ficar preocupados e gritar para o pessoal sair. Perdi um primo com a família dele toda (meu primo, a esposa, o filho de cinco anos, o sogro, o cunhado). A casa foi destruída. Houve deslizamento de terra sobre a casa dele, que a carregou para cima da casa do sogro e jogou para dentro do rio. Na segunda-feira, quando começamos as buscas, começamos a encontrar pedaços de casa. Vi corpos jogados nas plantações”, disse Juliano.
Giselo Miranda pôde alimentar os animais que ficaram isolados. Ele veio para tirar, aos poucos, a madeira da serraria parada.
A visão do morro rasgado com uma serraria logo abaixo, leva- nos a uma lógica automática: desmatamento gera deslizamento, mas não é esse o caso no local.
“Essa madeira veio de Curitiba. É tudo madeira legalizada. Não vem desses morros. Comprava de fora para evitar fazer desmatamento na nossa área”, garantiu Seu Giselo, o dono da serraria.
Segundo a prefeitura de Ilhota, quase todos os deslizamentos ocorreram em áreas de mata nativa. As imagens não negam. A floresta desabou em vários pontos.
Quando os deslizamentos aconteceram, tanta lama e tanta madeira que um rio que passava no local foi aterrado. Do outro lado, mais um deslizamento contribui para formar mais um leito de rio. Atualmente ele passa pelo meio do que antes era um arrozal.
A força da água carregou o carro por vários metros. A lama soterrou o trator do agricultor Sérgio Werner. Ele é o arrendatário da área. O terreno estava pronto para ser semeado. “A gente está plantando arroz há muito tempo. Nunca vi na minha vida uma coisa assim”, disse o agricultor.
Seu Sérgio mora bem longe, mas ele percorreu estas ruas várias vezes com seu jipe para ajudar os vizinhos. “Eu cheguei e vi gente desesperada”, lembrou Seu Sergio.
Todos se perguntam por que, desta vez, além da cheia do rio, as encostam desabaram. A agrônoma Cíntia Veiga, que faz parte do projeto de microbacias de Ilhota e acompanha de perto 270 famílias na região, tem uma explicação: “O solo tem rocha e em cima fica o solo, formado por argila e areia. São partículas. Eles funcionam como esponja e absorve toda a água. O que aconteceu com esse solo: teve excesso de água. Água que não teve mais como escoar formou um líquido de água, barro e de areia e desceu”, afirmou a agrônoma.
Além do excesso de água, dos deslizamentos, o povo da região teve que suportar outra tragédia: a explosão de um gasoduto que passa pela região. Na verdade, duas explosões: uma na rodovia SC-470 e outras no alto do morro, no município de Gaspar, vizinho de Ilhota.
Estes agricultores estão entre os primeiros a serem retirados de casa. Na falta de lavoura, limpam o terreno do abrigo e contam como foi o momento da explosão.
“A cama que eu estava em casa tremeu. Eu disse para o meu marido: ‘Tem uma coisa de errado’. Ele disse: ‘Eu acho que é o fim do mundo’. Antes da explosão a gente não estava pensando em sair de casa, pois nós estávamos em um lugar seguro, alto. O que quebrou as nossas terras foi o tremor”, afirmou a agricultora Terezinha Marthendal.
“Nós sentimos o tremor e logo o clarão. Sentimos as barreiras caírem. No outro dia, quando desci para falar com um vizinho eu não vi mais a casa. Houve quatro pessoas soterradas”, explicou o agricultor Claudio Moje.
A TDG, empresa responsável pelo gasoduto Bolívia-Brasil, acredita que a tubulação também sofreu o impacto dos deslizamentos de terra e pedra na região.
“Não houve explosão. Na verdade, houve o rompimento de um duto por conta da corrida de detritos e desabamento que houve na encosta da montanha trazendo árvores, pedras e um volume de terra muito grande. Foi deslocado por conta da quantidade muito grande de chuva, que ‘lavou’ onde estava o duto, causando o seu rompimento. Esse deslocamento de detritos ele causa um barulho muito grande e o pessoal pode ter confundido isso com uma explosão”, explicou o gerente regional da TBG Oswaldo Luiz Monte.
O Secretário de Agricultura e Meio Ambiente de Ilhota é cauteloso. “Acreditamos que possa haver uma relação do gasoduto e os deslizamentos que se seguiram, mas não temos essa certeza. Pode ter emanado uma grande vibração, seguida da explosão. Até que ponto isso provocou o descolamento do solo não temos como falar isso ainda. É claro que vai haver a necessidade de grandes estudos”, afirmou o secretário.
Enquanto o IPT, Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo, trabalha para mapear as áreas de risco e identificar as causas da tragédia, os desabrigados tentam ocupar o tempo.
Dona Doraci pendura as roupas no varal, mas não consegue lavar da memória o desespero que viveu.
Seu Edwin Schill está no abrigo provisório junto com a mulher e três filhos. Antes de chegar ao abrigou viveu momentos de terror. “Tirei duas pessoas que tinham sofrido acidente e estavam há várias horas lá. Isso me deixou traumatizado. Tirei uma senhora. Ela estava viva, grávida, segurando a barriga, perdendo sangue. Ela me disse: ‘Moçio, me tira desse lugar’.Saí correndo. Não consigo mais comer depois disso. Já fui ao médico. Eu fecho os olhos e vejo aquela cena”, afirmou Seu Edwin.
A mulher sobreviveu, mas o bebê não. Seu Edwin divide com os sogros as lembranças e o quarto. O casal Éspig perdeu cinco parentes e não sabe do que viver. Teve que deixar para trás a horta e 40 mil frangos.
“Estão morrendo de fome certamente”, lamentou Seu Edwin. “Fico com pena das coitadas que ficam piando direto. Eu não queria sair, mas… O policial entrou. Nós deixamos comida. Tínhamos três cachorros. Queriam ir junto no helicóptero, eu toquei para trás ainda. Nem olhei para trás para ver”, disse a criadora.
Todos contam as horas, os dias para sair daqui. Alguns, bem lá no fundo, sabem que talvez não consigam fazer o caminho de volta para casa, porque não existe casa, porque não existe caminho, mas ainda sobra vida e força para recomeçar.
“A gente tem que enfrentar e voltar. Se Deus quiser a gente volta. Não sabe quando come, mas no Natal a gente quer reunir a família, os amigos que restaram. Reunir todos eles para fazer um jantar de Natal pelo menos”, afirmou o agricultor.
O Ministério da Integração Nacional liberou R$ 45 milhões para a recuperação de ruas, casas, escolas, postos de saúde, coleta de lixo e demais obras na área rural afetada em Santa Catarina. A liberação de novos recursos ainda depende da avaliação dos estragos |